O Cavalo do Lenço Amarelo É Perigoso

MÁRIO CASTRIM

Aquele que continua ser, porventura, o mais célebre crítico de televisão português – pese embora haver falecido há já dois anos – ressurge inopinadamente entre nós assinando uma obra que talvez se pudesse caracterizar como um exemplo de falsa literatura juvenil. Ilustrada por Fedra Santos, esta aventurosa história do cavalo Arabé, animal tão bravio que seu dono lhe atou um lenço ao pescoço para mais facilmente o destinguir dos restantes, cairá provavelmente bem entre a petizada. Mas não sem alguma ajuda de um leitor mais velho, um intérprete/ tradutor que esteja apto a decifrar as argúcias linguísticas e os matizes sociológicos com que o autor compôs tal narrativa. Quiçá as exaltações:

«Todos os olhos estarão voltados contra ti. A televisão dará ao país um retrato robot elaborado pelos peritos da Secção do Crime. Corre Arabé, e se puderes voa. Inventa asas.
Responsabiliza os deuses que te arrancaram da espuma do mar. Obriga-os a tornarem-te à forma primitiva, pelo menos por agora: espuma se fores, o vento te arrastará tão depressa e tão desordenadamente sobre o mundo que não mais voltarão a encontrar-te.
Senão, se até os deuses te abandonarem ao desvario, se embarcares no menor desfalecimento, conta com a perdição.

De agora em diante, não serás tu quem segue para o matadouro: será o matadouro quem segue atrás de ti. Os homens conseguirão a situação para eles mais preciosa: a da legítima defesa. Agora, para os teus perseguidores, és perigoso mesmo, camarada: não apenas te recusas a morrer; como pretendes garantir essa recusa com o direito a matar.

É um resistente, este cavalo Arabé, e é esta flagrantemente uma história, uma novela de resistência, também ela tingida com as cores da estética neo-realista. Ou uma fábula (os animais também falam, aqui. E pensam!)


Betty Branco Martins